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Filmes

Mostra na Cinemateca honra mistério onírico do diretor David Lynch

Programação traz aclamados 'Veludo Azul', 'Cidade dos Sonhos', bizarro 'Eraserhead' e série seminal dos anos 1990 'Twin Peaks'

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São Paulo

Após anos de letargia —que superam bem os anos Bolsonaro, diga-se—, o setor de difusão da Cinemateca Brasileira parece ter voltado a mil por hora. De cara, fevereiro tem três mostras programadas para ocupar as suas duas salas —Grande Otelo, a principal, e Oscarito. Dessas, o destaque óbvio é para a Retrospectiva David Lynch, que, não sendo completa, traz oito filmes longos do notável diretor americano, um dos mais provocativos desde Luís Buñuel.

As atividades na Grande Otelo começam na quinta-feira, às 19h30, com a exibição de "Eraserhead", de 1977, primeiro longa do diretor, onde já aparecem as marcas de autoria que caracterizariam sua obra posterior.

Kyle MacLachlan e Isabella Rossellini em cena de "Veludo Azul", de David Lynch
Kyle MacLachlan e Isabella Rossellini em cena de 'Veludo Azul', de David Lynch - Divulgação

Na sexta às 20h, entra "O Homem Elefante", de 1980, primeiro filme mais próximo do mainstream do cineasta. A sala é a mesma, mas muda o horário, já que às 17h30 o programa "Dupla Direção" será aberto, trazendo a obra-prima da dupla Straub/Huillet, "Gente da Sicília".

Para sábado e domingo estão programados, respectivamente, "Veludo Azul", de 1986, às 20h, e "Coração Selvagem", de 1990, às 19h. Mas quem quiser fixar residência na Cinemateca por uns tempos poderá acompanhar nesses dias, entre outros, o belo horror "Trabalhar Cansa", de Marco Dutra e Juliana Rojas, de 2011, no sábado às 17h30.

Agora, atenção. Desde quinta a sala Oscarito estará mostrando a cada dia um dos oito episódios da série original de "Twin Peaks", de 1990, que Lynch e Mark Frost criaram em conjunto. Lynch dirigiu pessoalmente o piloto e o terceiro episódio e Frost, o oitavo. Eles vão passar na sala Oscarito por duas semanas, de quinta a domingo, sempre às 17h30, um episódio por dia.

Para a segunda semana está programado o principal da produção lynchiana. "Estrada Perdida", na quinta, 19h, na Oscarito, "História Real, na sexta, às 18h30, também na Oscarito, "Cidade dos Sonhos", no sábado, às 16h, na Grande Otelo e "Império dos Sonhos", no domingo, às 18h, na Oscarito.

A ausência do novo "Twin Peaks", de 2017, se faz sentir. Agora que seus 18 episódios já não estão na Netflix, pode-se ao menos sonhar em assisti-los, talvez, em tela grande, como Lynch gostaria.

Mas é possível dizer que o ciclo acompanha a evolução da delirante produção de Lynch. Seu caráter experimental —influenciado pelo surrealismo—, suas digressões para uma produção menos ousada —que lhe garantiu um lugar no panteão das premiações internacionais com a indicação ao Oscar por "Veludo Azul" e Palma de Ouro em Cannes por "Coração Selvagem"— e, por fim, a fase mais radical, que se inicia com "Estrada Perdida" e alcança níveis experimentais surpreendentes, com o novo "Twin Peaks".

Nesses filmes, com toda desenvoltura, Lynch explora superposições de tempos, trocas de personagens e/ou nomes, esferas de realidade diversas. Ele desenvolve um trabalho cheio de aparentes incongruências, que, no entanto, nos lança numa lógica e numa dinâmica ao menos muito próximas daquelas dos sonhos, em que elementos censurados aparecem sob disfarces discretos.

Lynch não se entrega a imitações dos sonhos, no entanto. Seu principal objetivo parece ser nos conduzir por um universo misterioso, onde certos elementos se apresentam inteiros à nossa compreensão, apenas para, pouco depois, nos deslocarem do universo conhecido e dominado pelo espectador, para outro, envolto numa névoa de estranhamento.

Eis o que faz seus filmes parecerem, por vezes, quebra-cabeças de peças que não se encaixam, enredando o espectador em sua própria curiosidade, em seu desejo de descobrir o "real" por trás do mistério ou do onirismo, como em "Cidade dos Sonhos", em que a personagem de Naomi Watts realiza seus desejos de tornar-se uma estrela, na primeira parte do filme, mas na segunda o processo se inverte e seu sonho se converte em pesadelo.

Talvez mistérios nem existam, como se pode pensar a partir de "História Real", em que um homem atravessa enorme distância sobre um cortador de grama apenas para encontrar o irmão, a quem não vê há muitos anos. Filme linear, claro, óbvio, confortável para o espectador, pode-se pensar enquanto o assistimos. No entanto, basta acabar o filme para pensarmos em outra direção —o que pode ser mais misterioso do que esse homem? O que justifica a sua jornada? O que foi sua vida até aquele momento e sobre a qual tão pouco sabemos?

Em Lynch é assim. O mistério só se resolve para dar lugar a outro. Está nos enredos tanto quanto nos acordes suaves e fugidios da música de Angelo Badalamenti, na inexpressividade expressiva de Kyle MacLahlan, na sensualidade arredia de Laura Dern etc. Em Lynch o mistério se desdobra, mas não termina nunca.

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